segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Coração Também Vê




O som irregular das ondas a morrer na praia preenchia o ar cansado do fim do dia. A espuma branca trazida pelas vagas saltava com alegria quando batia nas pedras escuras que povoavam o areal.
Gustav estava sentado entre duas rochas mais altas com os braços à volta das pernas flectidas, protegido do vento que desalinhava os seus cabelos loiros. Observava a beleza do mar e esperava com ansiedade o pôr-do-sol. Não tinha nada disto na sua cidade natal e aproveitava todos os momentos que podia para relaxar quando estava de férias e interiorizar toda a simples perfeição que o rodeava.
A certa altura, pareceu-lhe ouvir o som de passos na areia e elevou o corpo para espreitar por cima das rochas. A silhueta de uma rapariga alta e esguia recortava-se contra a falésia atrás de si. Caminhava devagar, como se quisesse sentir cada grão da areia fina que se encontrava debaixo dos seus pés descalços. O corpo estava coberto por um vestido de alças florido que ondulava ao vento, juntamente com os seus cabelos castanhos. Os seus olhos estavam tapados por uns óculos escuros e nos seus lábios rosados adivinhava-se o fantasma de um sorriso. Apesar de estar a mover-se na direcção de Gustav, não dava sinais de o ter reconhecido ou de ter sequer reparado nele e acabou por se sentar a poucos metros de distância sem uma única palavra.
Gustav reparou que já não faltava muito para que o sol começasse a desaparecer no horizonte azul e achou que ver aquele espectáculo magnífico acompanhado seria deveras melhor do que se estivesse sozinho e levantou-se para se sentar mais perto da jovem.
- Posso? – perguntou ele, pondo-se de cócoras junto dela, apenas esperando uma confirmação para se sentar.
- Pode o quê? – inquiriu ela, sem olhar. A pergunta era um pouco fria, mas a voz dela emanava calor e quietude, algo que contrastava com o mar algo revolto daquele dia.
- Sentar-me…
- Sim, pode – respondeu a jovem, após alguma hesitação.
Gustav sentou-se de pernas cruzadas, imitando a posição da jovem. Olhava de soslaio para ela, tentando decifrar o que estaria ela a pensar, mas a sua face era tão ilegível quanto bela. As linhas do rosto eram duras mas ao mesmo tempo suaves, como se o tempo e a vida estivessem a transformá-la em algo que ela não queria ser. A sua tez era pálida mas agradável à vista como se fosse uma boneca de porcelana.
- Como te chamas? – perguntou ele num tom informal ao mesmo tempo que o sol parecia tocar na água, pintando o céu com tons de fogo.
- Déa – aos ouvidos de Gustav, a voz dela soava melodiosa e atractiva – E tu?
- Gustav - ele estava espantado com a calma dela, mas depois apercebeu-se de que, para ela, ele não passava de um perfeito desconhecido, o que lhe agradava muito. Era sempre melhor ter conversas com desconhecidos do que com pessoas que apenas diziam o que ele queria ouvir – Tens um nome muito bonito.
- Obrigada, és muito amável.
Ao longe, o sol continuava a esconder-se no mar, deixando os primeiros vestígios da noite intrometer-se na calmaria daquela praia. As ondas começavam a ser mais pequenas e o vento que varrera o areal todo o dia tinha-se transformado numa simples brisa. Era como se os elementos da natureza perdessem a força com o desaparecimento da grande bola de luz que iluminava a Terra.
- O pôr-do-sol é tão bonito, não é? – comentou ele.
- É… É uma das coisas mais belas a que eu tive a oportunidade de assistir.
Gustav desviou a sua atenção para ela e ficou intrigado ao reparar que Déa tinha esboçado um sorriso algo triste.
- Costumas vir aqui muitas vezes?
- Todos os dias – disse ela, mantendo sempre a face virada para o mar – Conheço esta praia como a palma das minhas mãos.
- Então vives aqui perto?
- Sim, vivo aqui desde que nasci. Vês aquela casa na falésia ali em cima? – apontou com o indicador uma casa caiada de branco, segura no topo da falésia de onde Déa tinha vindo – Há várias gerações que a minha família vive ali.
O sol acabara de desaparecer por completo e as garras escuras da noite apoderavam-se rapidamente daquela praia solitária. A maré subia cada vez mais, aproximando-se a passos largos dos dois jovens.
- A maré está a subir, não está? – perguntou ela.
- Está. Aliás, se calhar é melhor sairmos daqui senão vamos ficar todos molhados em breve.
- Será que tens medo do mar, Gustav? – Déa soltou uma risada alegre e levantou-se.
Encaminhou-se para o mar no seu passo calmo, mas o movimento do seu corpo dava a ilusão de que estava a dançar ao ritmo das ondas pacíficas, embalado pela brisa refrescante. Quando a água salgada lhe banhou os pés, ela correu pelo mar dentro até ficar com água pelos joelhos e começou a rodopiar alegremente com os braços abertos.
- Gustav! – chamou ela, parando por um momento – Anda!
Ele olhava-a deslumbrado. Parecia uma criança, alegre e inocente. Tirou as sapatilhas e as meias, pousando-as ao lado das sandálias de Déa e correu também para o mar. Arrepiou-se quando os seus pés tocaram na espuma fria, mas só parou ao chegar perto dela. Ignorou o facto de os seus calções compridos estarem a ficar molhados porque se estava a divertir. Pela primeira vez em muito tempo, estava realmente a divertir-se como antigamente, na sua longínqua cândida meninice.
Começaram a atirar água um ao outro e rapidamente ficaram todos molhados. Saíram da água bastante tempo depois com a roupa toda colada ao corpo, tacteando no escuro à procura do calçado que tinha ficado para trás.
- Gustav, diz-me uma coisa… - pediu ela, enquanto se sentavam de novo na areia para recuperar o fôlego - Já é noite?
Gustav olhou para ela sem compreender bem a pergunta e olhou em volta. O sol tinha-se posto há algum tempo, as estrelas já eram bastante visíveis no céu escuro e a lua começava a espreitar por entre as árvores que enriqueciam o topo das falésias atrás deles. Não percebeu onde estava a dúvida.
- Claro que já é noite!
Perante aquela resposta, Déa levou uma mão à cara e tirou os óculos, deixando-os repousar nas suas pernas esticadas. Gustav observou-a com atenção, achando que se passava alguma coisa de estranho. Antes de poder dizer o que lhe ia na cabeça, Déa pronunciou-se, como se tivesse lido os pensamentos dele.
- Gustav… - disse ela, baixinho.
- Sim?
- Posso ver-te?
- Como assim?
Déa aproximou-se de Gustav e pôs as mãos nos ombros dele. Foi subindo devagar até ao pescoço e depois passou para a cara. Contornou cada traço dele com a ponta dos seus dedos suaves, deixando-o atónito com o que estava a acontecer.
- Tu és… - balbuciou ele quando ela se afastou, sem querer proferir a última palavra.
- Cega, sim – completou ela.
Um silêncio desconfortável envolveu-os, sendo quebrado apenas pelo suave murmurar das ondas.
- Mas tu andas sozinha e… Tu disseste que o pôr-do-sol é bonito… - Gustav atrapalhava-se com as palavras. Nunca se tinha visto numa situação destas e não sabia bem como reagir porque não queria de modo algum ferir os sentimentos dela ao dizer algo que não devia.
- Eu sou cega, não paralítica, Gustav. E não disse mentira nenhuma quanto ao pôr-do-sol, pois não?
- Mas como sabes?
- Já o vi… - Déa calou-se durante um momento, como se estivesse a recordar algo infeliz – Eu tive um acidente há poucos anos e fui perdendo a visão porque o nervo óptico ficou afectado. Os médicos não conseguiram fazer nada a tempo…
- Sinto muito… - lamentou Gustav, que podia sentir a amargura com que ela falava.
- Bem, é melhor irmos para casa, senão ainda apanhamos uma constipação por estarmos todos molhados – disse ela, retomando de súbito a sua alegria habitual como se nada de errado se passasse.
- Sim, é melhor – respondeu ele, sabendo que precisava de algum tempo para assimilar tudo - Amanhã voltas?
- Estou aqui todos os dias, Gustav – respondeu ela.
Levantaram-se e pegaram nos respectivos pertences. Déa aproximou-se de Gustav e tacteou o caminho até à sua bochecha, onde depositou um sonoro beijo.
Ele ficou a vê-la afastar-se à luz do luar, no seu passo lento e dançado, desviando-se das rochas com uma perícia extraordinária de quem via apenas com o coração.

4 comentários:

  1. oh minha querida, este texto está :O
    surpreendeu-me imenso o final e a forma como este pequeno romance se desenvolve é simplesmente deliciosa! de certeza que não estás a pensar numa carreira literária? tinhas bastante jeito ;)

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  2. *bate palminhas* Weeee, ainda bem que gostaste! Por acaso já tinha pensado nisso, mas é difícil viver só dos rendimentos dos livros. lol
    Mas quero muito publicar alguma coisa um dia. :D

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  3. Que bonito *-*
    Não consigo dizer mais nada... É que é mesmo bonita!
    Ainda não conhecia nenhuma OS tua... Se forem todas assim, tenho a certeza de que vou gostar :D
    E quanto à fic... já sabes que a adoro, acho que não é preciso dizer muito mais ^^

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  4. Obrigadaaa :D
    Espero sinceramente que gostes das outras que vou publicar aqui!
    Beijinhos**

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